UM RETRATO FEROZMENTE MAGISTRAL FEITO HÁ 118 ANOS MAS COM UMA ACTUALIDADE ATERRADORA. NOTÁVEL!
"Um
povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e
sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de
vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a
energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as
moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde
vem, nem onde está, nem para onde vai;
um povo, enfim, que eu adoro,
porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como
que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em
silêncio escuro de lagoa morta.
Uma burguesia, cívica e politicamente
corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras,
sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida
íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes
de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da
violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam,
entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente
inverosímeis no Limoeiro.
Um poder legislativo, esfregão de cozinha
do executivo; este, criado de quarto do moderador; e este, finalmente,
tornado absoluto pela abdicação unânime do País.
A justiça ao arbítrio da política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.
Dois
partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo
ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras,
idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo
zero, e não se amalgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém
deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de
jantar."
Guerra Junqueiro, 1896.